quarta-feira, 29 de agosto de 2012

“RINALDO” E A CONQUISTA DE JERUSALÉM




Georg Friedrich Händel (1685-1759)
 
     “Rinaldo” é uma ópera em três atos, estreada em Londres no ano de 1711, do compositor alemão Georg Friedrich Händel, mais tarde naturalizado inglês. O libreto é de Aaron Hill e baseia-se no poema de Torquato Tasso “Gerusalemme Liberata”, de 1580. A ação desenrola-se na época da Primeira Cruzada (1096-1099), quando o exército chefiado por Godofredo de Bulhão avança vitorioso para a sua última missão: a conquista de Jerusalém aos muçulmanos.
 
Rinaldo e Armida, 1734, François Boucher, Museu do Louvre
 
Rinaldo, descrito como um temerário cavaleiro cruzado, é enfeitiçado por Armida, uma feiticeira de Damasco aliada de Argante, o muçulmano que governava Jerusalém. Armida retém Rinaldo no seu jardim encantado na Síria, e ambos vivem um amor ardente. Entretanto, Almirena, a filha de Godofredo prometida em casamento a Rinaldo, chora a sua desventura. No final, Rinaldo liberta-se do feitiço de Armida, regressando aos seus deveres de cavaleiro cristão.
    Na época de Händel, a finalidade de cada ópera era mostrar os personagens principais, isto é, os cantores, numa variedade de situações emocionais fortes que se sucediam umas às outras. O tema principal era o amor frustrado, sendo os temas secundários as lealdades conflituosas e as ambições desmedidas. O final tinha de ser sempre feliz.
     Após estes considerandos, propomos a audição da ária Lascia ch’io pianga (“Deixa que eu chore”), uma das mais famosas da ópera “Rinaldo”; nela, Almirena, filha de Godofredo de Bulhão, chora o seu amor não correspondido por Rinaldo. Escolhemos uma passagem do filme Farinelli (1994) de Gérard Corbiau, que retrata a vida do famoso castrato Carlo Broschi, que ficaria para a posteridade como Farinelli.
 
 
     Como se pode verificar, a futilidade do libreto não corresponde à densidade dramática da música. Aliás, numa época em que o público nem sequer questiona a crueldade exercida sobre milhares de meninos que, ano após ano, são castrados para satisfazer uma moda, ou seja, o “requinte” de ouvir vozes de características únicas, é difícil exigir mais seriedade. Então e Jerusalém? Para a mentalidade europeia do século XVIII bastava saber que os cristãos tinham conquistado Jerusalém.
     Mas, e nós, judeus, como é que nós lembramos esta conquista de Jerusalém? As palavras de Elie Wiesel - Ser judeu, é reclamar o nosso direito à memória bem como o dever de a manter viva -, expressam tudo quanto queremos dizer sobre a memória, porque a memória cria laços entre o passado e o presente. Importa, assim, lembrar o que aconteceu aos judeus na Primeira Cruzada.
 
A GUERRA SANTA
 
Peregrinos cristãos diante da Igreja do Santo Sepulcro de Jerusalém, guardada por sarracenos
 
    Na Guerra Santa levada a cabo pelos cruzados, o objetivo era lutar contra os inimigos infiéis, quer fossem judeus, muçulmanos, pagãos, ou heréticos. Mas, o grande inimigo era o infiel que dominava o Santo Sepulcro: os muçulmanos. Entretanto, a Europa enfrentava alguns problemas internos, como a luta entre o poder religioso e o poder civil, ou o crescimento demográfico que se verificou no século XI, aumentando o número de marginalizados que procuravam formas de sobrevivência; o banditismo foi uma delas. Então, que resposta dar ao problema religioso e a uma insegurança motivada por um crescimento desgovernado da população?
 
Papa Urbano II exorta à Cruzada
 
    O Papa Urbano II (1088-1099) encontrou a solução: deslocar a atenção dos problemas internos e canalizar energias para a conquista do Santo Sepulcro em Jerusalém, apelando à Cruzada, de maneira a unir os cristãos, reafirmar o poder da Igreja e fortalecer a autoridade papal. Importa salientar que os cristãos ortodoxos de leste precisavam urgentemente da ajuda dos cristãos ocidentais, pois estavam a ser atacados pelos turcos seljúcidas na Anatólia. Mas antes que se organize a Primeira Cruzada ou Cruzada dos Nobres, nasce a chamada Cruzada Popular ou dos Mendigos.
 
OS MASSACRES DA PRIMEIRA CRUZADA
 
Massacre de Judeus na Primeira Cruzada, Bíblia séc. XIII
 
    O apelo à Cruzada vai despoletar uma onda de violência contra as comunidades judaicas de França e Alemanha, apesar da interdição da Igreja e da oposição de monarcas como Henrique IV, imperador do Sacro Império Romano Germânico. A ideia, muito enraizada na população, de que os judeus são os assassinos de Cristo, torna-nos numa presa fácil. Muitos cristãos questionam-se, porquê percorrer milhares de quilómetros para combater o inimigo, se ele está tão perto? É igualmente legítimo ponderar a questão pecuniária, já que muitos cruzados precisaram de contrair empréstimos para financiar a suas expedições à Terra Santa, recorrendo a judeus usurários. Convém lembrar que a usura, proibida a cristãos pela Igreja Católica, era permitida a judeus. Assim, estes cruzados, a coberto de uma missão religiosa, desembaraçaram-se comodamente das suas dívidas.
 
Pedro, o Eremita, mostra o caminho de Jerusalém aos cruzados (iluminura de c. 1270)
 
    O monge franco Pedro, o Eremita, que nenhum cronista acusa de pregar contra os judeus, inflamou multidões com as suas palavras, liderando um movimento popular, não oficial, que ficou conhecido por Cruzada Popular ou Cruzada dos Mendigos e que teve início em 1095. Estima-se em cerca de 40.000, o número de peregrinos, plebeus e cavaleiros de baixa estirpe, que por onde passam semeiam a destruição, provocando uma onda de massacres e conversões forçadas entre as comunidades de judeus do norte de França e da região da Renânia. De certa forma, fizeram com que o caminho para Jerusalém passasse pelas comunidades judaicas.
 
Cruzados durante o saque
 
Nas crónicas judaicas da Idade Média, estas perseguições a judeus ficaram conhecidas por Gezerot Tatnou - «Decretos do ano 4856».
 
Massacre dos peregrinos de Pedro, o Eremita
 
.....Sem recursos financeiros, preparação militar, ou qualquer tipo de disciplina, os peregrinos da Cruzada dos Mendigos foram praticamente exterminados por soldados muçulmanos, em Niceia, na Anatólia (atual Turquia), em Outubro de 1096, nunca chegando à Terra Santa. O monge Pedro conseguiu fugir.
 
 
A CONQUISTA DE JERUSALÉM
Godofredo de Bulhão conquista Jerusalém, Gustave Doré
 
    Em Julho de 1099, os cruzados chefiados por Godofredo de Bulhão, conquistaram Jerusalém. De acordo com as crónicas do arcebispo Guilherme de Tiro, com uma tal violência que quando os muçulmanos se refugiaram numa mesquita, foram trespassados a fio de espada. Quanto aos judeus que conseguiram refugiar-se numa sinagoga, esses, foram devorados pelo fogo ateado pelos cavaleiros cristãos.
 
MEMÓRIA E LEGADO DAS CRUZADAS
 
 
 
Na memória das populações locais do Médio Oriente, os movimentos militares dos cristãos foram vistos como invasões. Chamaram-lhes as Invasões Francas.
 
 
   As cruzadas, se por um lado aprofundaram o desentendimento entre cristãos e muçulmanos, sem esquecer um racismo crescente em relação aos judeus, por outro estimularam as relações económicas e culturais entre a Europa e a Ásia Menor. A Europa passou a conhecer produtos como o algodão e o açúcar. Finalmente, as cruzadas influenciaram a cavalaria europeia e durante séculos inspiraram a literatura. Exemplo disto é o poema “Gerusalemme Liberata”, que está na base da ópera “Rinaldo” de Händel.
     Se quisermos usar de uma certa liberdade, podemos interpretar as palavras de “Lascia ch’io pianga” como uma memória dolorosa das dores infligidas pela intolerância, naquele tempo, que se repetiu tantas vezes nesta nossa Europa.
 
 
Lascia ch'io pianga, mia cruda sorte,
e che sospiri la libertà.
Il duol infranga queste ritorte
de' miei martiri, sol per pietà!
 
 Deixa que eu chore o meu destino cruel,
que eu suspire pela liberdade.
A dor quebra estas cadeias
dos meus martírios, só por piedade!
 
 
Este artigo foi-me oferecido na íntegra pela minha amiga
Sónia Craveiro,
A quem mais uma vez agradeço com imenso carinho
 
Muito obrigada
Beijinhos

Fontes:
Sónia Craveiro
GALWAY, James, “A Música no Tempo”, Gradiva;
HISTÓRIA UNIVERSAL COMPARADA, vol. V, Círculo de Leitores;



 

2 comentários:

  1. è impressionante como não a historia, mas as pessoas ocultam isso, é muito fácil falar que nessas conquistas cristãos "Católicos" perseguiam cristãos em Jerusalém e muçulmanos, onde na realidade cristãos perseguiram Judeus e muçulmanos. Parabéns pela postagem, se todos que passam por aqui tivessem o trabalho de lê-la seria uma maravilha.

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  2. Shalom Midian, irei tranmitir o seu elogio à minha querida amiga, pois o mérito é todo dela.

    Muito obrigada,

    Laila Tov!

    Ziva David

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